«Que noite maravilhosa!», pensou. Na rua, ao passar perto de si, num segundo mágico, uma desconhecida ofereceu-lhe um olhar directo nos seus olhos enlaçado com um sorriso. Não quis perceber que provocou o olhar daquela mulher e que a sua reacção foi de embaraço. Isso não lhe interessava, porque ele sabia que podia interpretar o que viu como bem entendia, e assim fez. «Foi um olhar terno e um sorriso encantado!», decidiu. Aconchegou-se na sua caixa de cartão e agasalhou-se com um cobertor, sujo e roto, que mal cobria os seus pés enregelados. Repetiu, mentalmente, aquela imagem que viu com as suas belas nuances de significado. Estava quase a entrar no mundo dos sonhos, do qual conhecia muito bem as suas regras, e, desta vez, estava munido com uma senha de acesso a uma história bonita e feliz.
De repente, já lá estava... Viu-se como bebé num berço a ser beijado, carinhosamente, na testa pela sua mãe - na realidade, abandonou-o numa rua no próprio dia do seu nascimento. Sabia que estava a sonhar, mas preferia esta ficção arrebatadora ao pesadelo amargurado da sua vida. Estava tão habituado a criar sonhos com as suas memórias recentes, que compreendia a importância deste momento para a sua libertação. «Quero ficar aqui contigo!», desejou.
As funções básicas do seu corpo degradado estavam muito diminuídas e, no estado alterado de consciência em que se encontrava, sabia o que fazer para as extinguir. Parou o coração... e, sem qualquer saudade do mundo, entregou-se aos braços da sua mãe.