terça-feira, 22 de janeiro de 2008

Sobre a mentira

A falsidade desenvolve a desarmonia do Eu. Na realidade, sempre que se mente a alguém, exibe-se uma máscara, uma deformação do Eu, ou seja, promove-se o desenvolvimento de um corpo estranho a todos os níveis:

Físico - a expressão verbal e não verbal da mentira é artificial, enquanto qualquer comportamento físico em que participa a manifestação da verdade é natural. Desta forma, a falsidade exteriorizada advém sempre de um investimento interior no seu núcleo originário - a parte falsa do Eu, que corresponde ao medo de se mostrar tal como se é, ou seja, de não se ser suficientemente aceite e amado com as suas reais características. Concomitantemente, a expressão da mentira provoca, naturalmente, uma reacção bioquímica "mentirosa". Quando uma pessoa mente, deforma o seu próprio Eu físico, porque não existe separação entre a vida mental e a vida física: as linguagens são diferentes, mas na continuidade biopsíquica, ocorrem sistematicamente traduções linguísticas entre as diversas expressões do ser. Neste sentido, a mentira contribui, indubitavelmente, para a desarmonia da saúde física, podendo cristalizar-se, pela sua continuidade, em qualquer forma de patologia orgânica;

Mental – As crenças sustentadas na artificialidade mentirosa, promovem o culto da forma, da exacerbação dos valores materialistas, em que a prossecução de uma extraordinária imagem exibida numa fina tela do Eu é o requisito essencial para o bem-estar. Desta forma, a mentira continuada é o investimento necessário para sustentar um Eu “LCD”, cuja maravilhosa imagem emanada parece tão nítida, que quase parece um Eu real. Neste sentido, a mentira está sempre ao serviço de um holograma de Eu, que se evidencia num ilusório espaço-tempo, onde a verdade, real, autêntica de cada ser, é deveras ameaçadora, porque é sentida como destruidora do tipo de mundo onde o falso Eu sobrevive. Porém, neste mundo em que se sustém a falsidade, todos os sentimentos que se assemelham à alegria e felicidade terão a marca indelével da expressão do seu disforme Eu: o falso Eu só pode aspirar à falsa felicidade;

Emocional - Neste nível, a mentira esforça-se por manipular as emoções, de uma forma que seja conveniente aos interesses do falso Eu. Perante um estado de angústia, a mentira pode ser vista como uma solução efémera para diminuir a tensão interna, evitando, assim, eventuais consequências relacionais não desejadas. Neste sentido, a mentira pode ser compreendida como uma droga, cujos efeitos podem ser agradáveis, mas não são sustentáveis, porque não resolvem o problema emocional de fundo: o escasso amor próprio. Aliás, através da prática da mentira, o Eu vai confirmando, pelo hábito de não se mostrar autêntico, o seu doloroso baixo valor, bem como uma desesperança crónica em relação a um genuíno amor dos Outros, já que se pressente que através de uma máscara social imaculada, se receberá maior investimento afectivo. Nesta medida, o projecto mentiroso nas relações humanas, passa por revelar, cada vez mais, um Eu Ideal, de prótese, de aparência, com um intenso desejo de ser admirado, já que amado não poderá ser, porque a mentira não permite a construção de intimidade. De facto, só a verdade é, intimamente, real...