O processo de perdão permite transformar o ódio no seu complementar: o amor. Se alguma capacidade de perdão é necessária para transitar de uma posição onde o ódio impera – posição esquizo-paranóide – para outra onde existe uma simultaneidade de sentimentos de amor e ódio – posição depressiva – essa faculdade de perdoar, ainda embrionária, deverá ser desenvolvida para conduzir o Self para um território onde já não é o ódio que predomina, nem a sua concomitância com o amor, mas sim um espaço psíquico em constante construção, que designo por posição amorosa, já que nesta é reinante o amor, e a parcela de ódio que ainda persiste, encontra-se em processo de transformação para o amor, através da prática sistemática do perdão.
Saliente-se que uma pessoa com uma capacidade de perdoar, operante e consistente, desenvolve, naturalmente, o amor incondicional que, na sua essência, é trans-objectal, uma vez que consiste numa postura amorosa face ao mundo em geral, e que é nutrida somente pela satisfação interior da dádiva e compaixão.
Ao invés, ao privilegiar-se, de forma recorrente, determinadas pessoas para investimento amoroso, este tipo de afecto, sendo discriminatório é, inevitavelmente, amor condicional. Porém, na posição amorosa, a componente de amor condicional que ainda persiste, não deve ser entendida como algo negativo, mas sim como fazendo parte integrante, e necessária, de um processo mutativo, cujo resultado é o aumento, progressivo, do amor incondicional, verdadeiramente abrangente. Na realidade, o amor condicional pode ser bem vivido se a reciprocidade for, pelo menos, suficientemente praticada pelos parceiros de relação. Com esta condição satisfeita, a alegria inerente a relações onde se ama e se é amado de forma similar, transborda para fora desses âmbitos relacionais restritos, promovendo, assim, o global amor incondicional.
Por conseguinte, um indivíduo com uma estrutura psíquica que se baseia no funcionamento da posição amorosa, lida com experiências passadas e situações vivenciais actuais desencadeadoras de culpa, através da prática sistemática do perdão, dispondo assim, cada vez menos, de sentimentos de culpa que perdurem no seu espaço psíquico, não existindo, desta forma, um forte atractivo para estabelecer relações onde dá, persistentemente, mais amor do que recebe, uma vez que ao privilegiar o mecanismo psíquico do perdão, não tende a projectar nos outros os seus próprios sentimentos de culpa. De facto, quem recebe reiteradamente mais amor do que dá, numa determinada relação, desenvolve, naturalmente, sentimentos culposos...
Uma outra razão fundamental que leva um indivíduo, que trilha o caminho da meta-ambivalência, a não desejar relações onde investe, frequentemente, mais amor do que recebe, é que estas relações são frustrantes para si. Neste sentido, uma pessoa que pratique de forma consistente o perdão, nomeadamente o perdão da sua culpa, transforma, paulatinamente, o ódio que sente por si próprio em amor, desenvolvendo um narcisismo saudável, que ultrapassa a atracção masoquista de relações preferenciais que o frustram de forma continuada.
Por outro lado, uma personalidade constituída desta forma, não se sente predisposta para relações onde investe, continuadamente, menos amor do que recebe, uma vez que estas são promotoras de sentimentos de culpa, pelo menos inconscientes, aos quais a parte não culposa da personalidade, sendo dominante, não se vincula. Acrescente-se que o facto do sujeito sentir cada vez menos ódio pelos outros, já que tende a perdoar-lhes as suas falhas, promove o desejo de retribuir o amor que recebe.
* Neste texto, realizou-se uma análise do processo de perdão em relações preferenciais, com excepção das relações pais-filhos e de relações de ajuda com esse vínculo simbólico, cuja reflexão será explanada num texto ulterior. Note-se que, em qualquer relação preferencial, nomeadamente de amizade, namoro ou conjugal, existe sempre investimento amoroso, cujo nível de intensidade é inerente ao tipo de projecto que se prossegue, e de acordo com a capacidade de amar de cada participante relacional. Por fim, importa sublinhar que os conceitos psicanalíticos de posição esquizo-paranóide e posição depressiva são da autoria de Melanie Klein.