quinta-feira, 3 de maio de 2007

A parte ateísta e a parte de consciência divina da personalidade*

Tendo um grande interesse pelo paradigma emergente dos conhecimentos espirituais, ao analisar a psique humana, proponho uma formulação que considere em cada indivíduo uma parte ateísta e uma parte não ateísta da mente, seguindo uma analogia com os conceitos psicanalíticos de parte psicótica e parte não psicótica da personalidade, desenvolvidos por Wilfred Bion, mas não fazendo uma correspondência directa entre os termos destas duas conceptualizações, embora considere que a forma de funcionamento do ateísmo é uma modalidade de psicose, não descrita explicitamente por Bion.

Assim, a parte ateísta da psique humana vive sob a ideia delirante de um nada associado à transformação a que, vulgarmente, designamos por morte. Essa angústia existencial provoca a ânsia de concretizar um desejo desenfreado de infinitude material, numa vivência limitada a um corpo físico. Os sentimentos de posse, que emergem pela falsa crença na finitude, mas também pela sensação de uma ilusória separação entre tudo o que existe; os ciúmes, que são, fundamentalmente, sentimentos de posse em relação a pessoas amadas, conjugados com a angústia de perda do amor delas; e a inveja, derivada de um fantasma que há uns seres mais divinos do que outros, são manifestações habituais do exercício do ateísmo numa mente que pode, ainda assim, ser predominantemente não ateísta, se estas vivências não forem muito regulares e intensas.

No entanto, quando a parte ateísta da mente é dominante numa personalidade, estes e outros fenómenos mais graves tendem a suceder com maior frequência. Na realidade, esta parte da personalidade funciona aquém do amor incondicional e, na melhor das hipóteses, orienta-se para os prazeres efémeros, típicos do amor condicional. De facto, as ilusórias crenças na mortalidade e separação provocam uma forte angústia, e um desejo voraz e frenético de consumismo num sentido lato: material, imaterial e, pior que tudo, relacional. Nesta medida, os outros passam a ser vistos pelo prazer fugaz que podem dar, não se construindo, de facto, relações, mas sim momentos de encontros humanos desconexos, intercalados por profundos sentimentos de vazio.

Um dos exemplos actuais mais evidentes da manifestação de psicopatologia global ateísta é a inércia mundial face à mudança necessária no planeta que habitamos, que Al Gore manifesta no documentário “Uma verdade inconveniente”. Ao acreditar-se que se é mortal, o egoísmo – manifestação de um narcisismo maligno, como defendem os psicanalistas – é mais uma das características de um auto-imposto inferno de pesadelo de finitude, onde a destruição, o caos, e a infelicidade são reinantes. Nesta óptica, como existe uma insuficiência de consciência de ligação com os outros no Todo, os interesses egoístas do ser são preponderantes, e o futuro a longo prazo do planeta é irrelevante, porque crê-se que, nessa altura, após a morte do corpo físico, nada existe.

No que concerne a este tipo de psicopatologia, numa óptica individual, no extremo, quando o sentimento de desconexão com o Todo é maior, a própria separação é sentida dentro dos limites do próprio Eu, provocando a fragmentação, típica da psicose.

Concomitantemente, toda a psicopatologia pode ser compreendida à luz do tipo de relação que se mantém com o Todo, mas a análise minuciosa das diversas variantes psicopatológicas não faz parte do âmbito restrito deste trabalho. Contudo, considero que o funcionamento psicopatológico ateu ficou suficientemente esclarecido, mas tenciono voltar a debruçar-me sobre este tema em reflexões ulteriores.

No que respeita à parte não ateísta da mente – que julgo que se pode nomear de forma mais eloquente como parte de consciência divina da personalidade –, o amor incondicional é o sentimento que caracteriza, e faz fluir, todo o dinamismo deste espaço psíquico. Tal como já referi anteriormente, alguns pontos de contacto existem entre esta conceptualização e a proposta de Bion. Assim, o processo de interiorização de um bom objecto total, próprio do funcionamento da posição depressiva[1], operante na parte não psicótica da personalidade, pode ser entendido de uma forma diferente numa perspectiva holística, na parte de consciência divina da personalidade, na qual o indivíduo se sente, não como tendo integrado um bom objecto, mas sim sentindo-se integrado como um bom objecto na Unidade global, como uma célula consciente de um corpo universal, que é Deus. Por conseguinte, quando a parte de consciência divina da personalidade é dominante, ao sentir a ligação com o Todo, o indivíduo deseja o melhor para tudo o que existe e não apenas para si, porque neste nível de consciência acede a um plano global, onde compreende que influencia e é influenciado por tudo. Assim, esta parte da mente, pretende a nível global amor, paz, alegria e harmonia, e age em conformidade, vivendo, dessa forma, esses bons sentimentos.

Por outro lado, no pensamento bioniano, o processo de desintegração e caos, conduzido pelo ódio que é apanágio da posição esquizo-paranóide, e reinante na parte psicótica da personalidade, é facilmente compreensível numa versão conceptual macroscópica da realidade, na qual o indivíduo nega a sua imortalidade e a ligação com tudo o que existe, acedendo a mecanismos de clivagem, senão mesmo fragmentação da sua experiência com o Todo, numa relação de objecto com Deus, que é melhor definida como relação com não-Deus, onde o ser humano se sente desintegrado do organismo total a que pertence, com todas as consequências nefastas anteriormente referidas em relação à parte ateísta da personalidade.

Uma nota final para todos os assumidamente ateus que, apesar de o serem, são seres altruístas e que acedem à prática do amor incondicional, mesmo sem tendo consciência disso. De facto, estes indivíduos vivem sob o funcionamento preponderante da parte de consciência divina da personalidade, mas simplesmente regem as suas condutas por uma moral ou filosofia de vida específicas, que acabam por ser concordantes com os princípios divinos, existindo somente um véu a cobrir a relação saudável que mantêm com o Todo. Um exemplo que me parece particularmente evidente deste modo de funcionamento psíquico, surge em psicanalistas e em psicoterapeutas de inspiração psicanalítica que acreditam na imortalidade simbólica, mas não na imortalidade em si, dedicando-se a ajudar os outros no seu desenvolvimento de vida, e orientando-se, no dia-a-dia, para o Bem Comum com impacto nas gerações futuras, deixando, desse modo, a marca da influência de uma vida humana particular na intemporalidade. O tal véu que surge aqui, e que impede de ver a relação com Deus, tal como estes indivíduos a vivem, torna-se evidente no próprio conceito de imortalidade simbólica. Como se sabe, o símbolo representa sempre algo concreto, mas isto é exactamente o que está obscurecido nestas personalidades: acedem ao símbolo do divino, mas não concebem a existência do objecto representado – Deus –, o que é um erro lógico...

[1] Os conceitos de posição depressiva e posição esquizoparanóide são de autoria de Melanie Klein, e foram integrados e desenvolvidos na teoria psicanalítica bioniana.

* Excerto do texto "Uma perspectiva holística do objecto do trabalho de luto", escrito por Nuno Almeida e Sousa, no qual foram abordados detalhadamente os conceitos de morte e ruptura. Para uma leitura sintética sobre estes assuntos, poderá consultar neste blogue: "A religião do nada" e "Além do eu, amando o outro". No que se refere ao amor condicional e incondicional, sugere-se a leitura do post: "Escala evolutiva da capacidade de amar".