A paixão:
“Os míopes estão apenas sujeitos à paixão”
O meu psicoterapeuta disse-me uma vez, numa sessão, que a paixão é uma forma de identificação projectiva. Discordamos em muitos assuntos, mas julgo que ele tem razão nesta matéria. De facto, num estado de paixão, o objecto de desejo não é visto tal como é, mas sim percebido através da projecção de parte(s) do ego e/ou, de forma mais frequente, de objecto(s) interno(s) idealizado(s).
Existe uma necessidade intrínseca, e inconsciente, das pessoas utilizarem este mecanismo de defesa ao longo das suas vidas. Na realidade, tal se prende com um desejo reivindicativo do Eu de obter o que faltou em relações significativas, mormente na relação com os pais na infância. Ora, esta falha, a que Balint designou por falha básica, é somente falta de amor. No fundo, a paixão é uma manifestação de um desejo de obter amor, não de objectos actuais, mas sim de objectos do passado.
Por conseguinte, os objectos actuais que são alvo de paixão são apenas meros substitutos dos verdadeiros, que foram sentidos como frustrantes, porque desamantes ou insuficientemente amantes. Este estado é assim ilusório, já que os intervenientes desempenham papéis que não correspondem à autenticidade dos seus Eus: o sujeito apaixonado assume um papel infantil desadequado ao tempo presente; o objecto da paixão acaba por assumir, de forma mais ou menos intensa, um papel estimulado pela identificação projectiva do sujeito apaixonado. A frustração em ambos é, deste modo, o resultado previsível de uma relação que se funda segundo estas vivências, tornando-se ainda mais frustrante se ambos os parceiros estiverem apaixonados, ou seja, imbuídos do modo de viver a relação afectiva através da identificação projectiva.
A paixão é também, assim, uma manifestação da compulsão à repetição e da incapacidade de fazer lutos. Repete-se, porque as relações do passado ficaram aquém do desejo e da fantasia, como diria Coimbra de Matos, ao qual sintetizo dizendo: ocorreram fixações no desejo de receber mais amor. Desta forma, a paixão, movida pela identificação projectiva, é reveladora de uma fixação na posição esquizo-paranóide[1], sendo esse o modo de funcionamento que caracteriza a parte psicótica da personalidade, que existe, em maior ou menor grau, em todos os seres humanos.
Contudo, não será apenas ao nível do desejo de receber amor de figuras do passado que se constrói o estado de paixão. O desejo de dar amor a essas figuras também pode ser a semente geradora da paixão, através de um objecto substituto. É assim, o modelo de reparação do objecto, característico da posição depressiva. Mais uma vez, a desilusão será uma inevitabilidade, dado o carácter de irrealidade existente nessas relações. Não se ama a genuinidade do Outro, mas sim o que é projectado nele de um objecto ou de uma parte do ego a necessitar de ser reparada. Tal se deve ao facto que, embora se aceda à posição depressiva nestes casos, a sua elaboração não é completa, mas meramente parcial, já que ainda está sujeita à influência da identificação projectiva inerente à posição esquizo-paranóide.
O amor:
“Só é possível amar algo que se vê no horizonte”
Na minha concepção, o estado de enamoramento implica uma apreciação globalmente muito positiva do objecto de amor de acordo com as suas características específicas, e a relação com esse objecto tem o estatuto de preferencial (termo utilizado por Coimbra de Matos a propósito da relação com o objecto de desejo) – a relação com o objecto de amor proporciona maior prazer ao sujeito do que a relação com qualquer outro objecto. Assim, o que sucede é que o Eu investe a sua líbido de uma forma intensa e singular no encontro com um outro Eu, mas existe uma separação-individualização cabal entre o Eu e o Outro, implicando assim uma noção de distância no espaço psíquico entre o Eu e o objecto significativo actual.
O amor, assim entendido, necessita de uma elaboração consistente da posição depressiva, onde o objecto de amor é percepcionado como uno e entendido como claramente distinto do Eu. Nesta óptica, o investimento objectal pode ser observado no entre-mundos psíquicos, não tendo assim como alvo o próprio Eu do sujeito – investimento narcísico do Eu -, nem, no fundo, directamente o Eu do objecto de Amor – investimento narcísico do objecto -, já que, para investir sobre o Eu de um objecto, teria que haver uma invasão do espaço psíquico do Outro, que implicaria a projecção de partes do mundo interno do sujeito – egóicas ou partes de objectos internos.
De facto, acredito que aquilo que se considera como investimento objectal é o investimento no espaço psíquico que medeia o Eu e o objecto, sendo que, no caso do amor, tal como em outras modalidades relacionais de investimento positivo como a amizade, o que sucede é uma ligação entre ambos os intervenientes, que pode ser ilustrada pela metáfora da construção de uma ponte que beneficia as localidades de duas margens. Naturalmente, para que a relação amorosa seja harmoniosa e profícua para ambas as partes, é necessário que exista, em termos dinâmicos, uma procura de equilíbrio no quantum de investimentos - aquilo que vulgarmente se designa por reciprocidade. Caso tal não suceda, um dos sujeitos cairá numa situação depressígena, porque causadora de depressão – tal como foi explicado por Coimbra de Matos -, já que está a dar mais do que recebe e, se esta dinâmica for intensa e duradoura, o sujeito terá tendência a estar mais vulnerável a desenvolver estados de paixão para obter o que lhe faltou, segundo o modelo explicado na secção anterior.
Concomitantemente, pode-se considerar que os amantes têm, assim, um projecto comum – a construção de uma “ponte” –, mas para que tal seja realizado, é importante invocar um outro conceito pertinente para esta análise, desenvolvido por Bion: a oscilação Ps ↔ D[2]. Considero a produção do amor como mais característica da posição depressiva, uma vez que é a partir dela que se observa a obra que está realizada em cada momento, e se investe no que é necessário para a sua continuidade e crescimento. Todavia, a evolução de uma obra é algo que se deve à oscilação Ps ↔ D, uma vez que nada se desenvolve linearmente, mas sim por avanços e recuos, onde a desintegração e a dispersão (Ps) – que pode ser verificada na erosão e desgaste da “ponte” ao longo do tempo – é necessária para que se faça uma integração dos elementos num nível de elaboração superior (D) – a manutenção e remodelações periódicas que a “ponte” necessita, e sempre com melhores técnicas e materiais que o desenvolvimento da engenharia civil permite.
Naturalmente, uma obra está sempre em construção, mas esse “sempre” sofre de abuso linguístico, já que ele está confinado a um limite temporal, que depende da finitude associada à existência humana, bem como da data de validade dos projectos determinada pelos intervenientes – as relações amorosas estão, obviamente, sujeitas a terminar, ou seja, as “pontes” podem cair por si só, serem demolidas devido à intervenção de alguém, ou aquilo que foi construído ser aproveitado por gerações posteriores. Neste último caso, a obra produzida pelo amor será transmitida a outros interessados, que a utilizarão como matéria-prima para a prossecução dos seus próprios projectos, que podem ou não ser amorosos. Por exemplo, para mim, a 9ª sinfonia de Beethoven foi elaborada através da capacidade de amar do seu autor, cuja belíssima obra tem sido aproveitada pelas gerações seguintes, quer pelos alunos de música, quer por todos aqueles que apreciam ouvir música clássica.
Um conceito que considero pertinente abordar ainda, nesta reflexão sobre o amor, é o de conflito estético, desenvolvido por Meltzer. Será que aquilo que é belo segundo a percepção sensorial corresponderá a uma qualidade análoga ao nível da personalidade, ou seja, o que é belo pode ser bom?
A este propósito, reflicto de seguida sobre a reacção de alguém com suficiente capacidade de amar. Coloco para análise a seguinte situação: após um breve contacto com alguém que se acabou de conhecer, atribui-se a ela a qualidade da beleza pela aparência. Contudo, com o desenrolar da experiência relacional com esse objecto, pode-se verificar uma de duas coisas: a personalidade percebida é emocionalmente sentida como contrastante à beleza de superfície, o que estimula uma correcção perceptiva da impressão inicial, ou seja, deixa-se de ver tal pessoa como bonita em termos físicos; ou, também poderá acontecer que se percepcione uma pessoa como corporalmente bela, mas a sua personalidade ser sentida como mais bonita, levando a um exacerbar da apreciação física inicial.
Como é óbvio, existirá situações intermédias entre estes dois pólos mais extremados de perceber o belo numa personalidade mais saudável no que toca à capacidade de amar, sendo que uma situação contrária à exposta anteriormente coloca-se também frequentemente, em que uma apreciação inicial de uma pessoa como feia pela aparência estará sujeita a uma correcção, num ou noutro sentido, após um conhecimento minimamente consistente da sua personalidade.
Contudo, alguém que, tipicamente, apenas se apaixona, tenderá a atribuir uma importância excessiva à componente física, resolvendo o conflito estético não pela procura de um conhecimento emocional do Outro através da experiência dessa relação actual, mas pelos dados que inconscientemente acede do passado de figuras significativas. A pessoa alvo da paixão será, assim, no limite, uma tábua rasa que, tendencialmente, é considerada bonita em termos físicos, para facilitar a projecção do objecto interno idealizado do passado.
Concluindo, defendo que o amor, enquanto sentimento à distância, permite que, metaforicamente, a visão do objecto amado seja translúcida – através da capacidade de ver por um vidro de uma janela com essa propriedade – já que toma em consideração quer a superfície, quer o que existe para além dela. No entanto, apesar de nunca se conseguir percepcionar com total clareza a paisagem interna do objecto amado, uma atenção cada vez mais apurada, através da procura de perspectivas diferentes de observação, permite um conhecimento emocional do Outro mais próximo da sua efectiva realidade incognoscível[3].
* Excerto do texto "A relevância do amor na relação psicoterapêutica", escrito por Nuno Almeida e Sousa, em Julho de 2006.
[1] A posição esquizo-paranóide e a posição depressiva são conceitos desenvolvidos por Melanie Klein.
[2] Ps e D correspondem, respectivamente, às posições esquizo-paranóide e depressiva descritas por Melanie Klein.
[3] Utiliza-se aqui o termo conhecimento emocional do Outro no sentido utilizado por Bion, no que respeita ao vínculo K ("Knowledge"). Ainda segundo o mesmo autor, a realidade última, a coisa-em-si, é incognoscível.